domingo, janeiro 27, 2019

Quarto 108


Quando meu pai completou onze anos de idade, em 28 de abril de 1932, ganhou de presente de meu avô o livro “A alegria de viver” que anos mais tarde foi encadernado pela minha mãe que aprendera a técnica em curso de biblioteconomia. O milagre de minha mãe em mim se deve à sua interiorização tanto geneticamente como de maneira adquirida durante todo o tempo de convívio que tivemos. Neste sentido, graças à sua forte presença, consigo reações de defesa para alcançar boa saúde e amenizar o que possa me afligir física ou mentalmente. Mas confesso que preciso interiorizar o sentido mais abrangente do que a caracterizava e que ainda a ouço dizer: “sua mãe tem alegria de viver”.
Hoje, dia 29 de novembro de 2018, faz um ano que a visitei no seu décimo dia de internação hospitalar. Depois de me apresentar na recepção e receber identificação de visitante, caminhei pela rampa até a Ala 1 do Hospital sem cheiro de hospital. Em seguida, sem bater, abri vagarosamente a porta do quarto 108 naquela manhã de céu azul. Lá estavam minha terceira irmã, uma acompanhante que eu não conhecia e minha mãe deitada em cama hospitalar eletrônica. O quarto era amplo com boa iluminação, banheiro e ar condicionado. Havia até um espaço antes da entrada do banheiro e um armário tipo guarda roupa. Assim que ela notou minha presença me disse: “você veio em má hora”. Havia acabado de receber visita da médica oncologista que sustentando seu prognóstico sombrio fez com que ela perdesse alguma esperança que ainda a mantinha viva. Por isto, estava calada, em completo silêncio, olhando para o teto, olhando para o vazio. Eu, me lembrando de sua surdez, me aproximei um pouco mais e lhe perguntei como se sentia e ela me disse baixinho: “é muito sofrimento”. Em seguida, voltou ao seu silêncio com o olhar perdido e distante. Naquele momento, intuindo o que realmente acontecia me afastei e observei com mais vagar a cor de sua pele perdendo o brilho. Era como se estivesse partindo e a cama eletrônica fosse seu leito de morte. E, de repente, subia lá do fundo uma crise de pranto que precisei conter rapidamente, pois não poderia prantear a morte de alguém que vivia. E me dominei e me afastei em direção da janela mirando um pedaço de jardim lá fora. Inspirei profundamente para despistar a choradeira que queria brotar e fazer de conta que era apenas falsa impressão minha, pois ela, embora distante, ali continuava viva. Recuperei a coragem e voltei ao seu lado e lhe perguntei se tinha algo a dizer. Eu estava com meu gravador portátil digital e pretendia gravar. Para minha decepção ela disse que não tinha nada para falar. Depois chegou a refeição e já passava das onze horas. Ela quis comer batata frita e cebola que faziam parte da bandeja da acompanhante. Eu percebi que o alimento lhe servia de conforto quando minha irmã me disse que ela sempre gostou de cebola e batata frita. Depois da refeição pediu fio dental, sorvete de chocolate e algo mais. E então me despedi dela e fomos eu e minha irmã até o supermercado mais próximo para comprar o que queria. Sem que pudesse atinar, foi a última vez que a vi com vida, pois faleceu três dias depois. Desde então, secretamente, vou refazendo minha visita; giro a maçaneta da porta e estou, mais uma vez, dentro do quarto 108.

quinta-feira, janeiro 03, 2019

Tempo de ser




Encantou-me a brincadeira,
de espreitar no mostrador,
voltas sem fim dos ponteiros.

Mas, quando entardeceu,
a soma de todas as horas
não teve mais espaço
no meu relógio infantil.

Enquanto pude acreditar
que os anos seguiriam
independentes de mim,
fui despercebido rodando
para o inverso de vida;
tempo que melhor seria
como início e não fim.

Pois se era forte e moço,
a evolução não poderia
me transformar num esboço
de quando me conheci.

Sem antes estar assim
desejei que houvesse retorno
ao passado em que me vi.
Ou que velhice vindo antes
trouxesse juventude a seguir.


Será ilusão o velho
enquanto fizer perene
este meu tempo de moço.

A estrutura física esconde
o que sei que não mudou,
a mesma criança que fui
é aquela que inda sou.