Quarto 108
Quando
meu pai completou onze anos de idade, em 28 de abril de 1932, ganhou de
presente de meu avô o livro “A alegria de viver” que anos mais tarde foi encadernado
pela minha mãe que aprendera a técnica em curso de biblioteconomia. O milagre de
minha mãe em mim se deve à sua interiorização tanto geneticamente como de
maneira adquirida durante todo o tempo de convívio que tivemos. Neste sentido,
graças à sua forte presença, consigo reações de defesa para alcançar boa saúde e
amenizar o que possa me afligir física ou mentalmente. Mas confesso que preciso
interiorizar o sentido mais abrangente do que a caracterizava e que ainda a
ouço dizer: “sua mãe tem alegria de viver”.
Hoje,
dia 29 de novembro de 2018, faz um ano que a visitei no seu décimo dia de
internação hospitalar. Depois de me apresentar na recepção e receber identificação
de visitante, caminhei pela rampa até a Ala 1 do Hospital sem cheiro de
hospital. Em seguida, sem bater, abri vagarosamente a porta do quarto 108
naquela manhã de céu azul. Lá estavam minha terceira irmã, uma acompanhante que
eu não conhecia e minha mãe deitada em cama hospitalar eletrônica. O quarto era
amplo com boa iluminação, banheiro e ar condicionado. Havia até um espaço antes
da entrada do banheiro e um armário tipo guarda roupa. Assim que ela notou
minha presença me disse: “você veio em má hora”. Havia acabado de receber
visita da médica oncologista que sustentando seu prognóstico sombrio fez com
que ela perdesse alguma esperança que ainda a mantinha viva. Por isto, estava
calada, em completo silêncio, olhando para o teto, olhando para o vazio. Eu, me
lembrando de sua surdez, me aproximei um pouco mais e lhe perguntei como se
sentia e ela me disse baixinho: “é muito sofrimento”. Em seguida, voltou ao seu
silêncio com o olhar perdido e distante. Naquele momento, intuindo o que
realmente acontecia me afastei e observei com mais vagar a cor de sua pele perdendo
o brilho. Era como se estivesse partindo e a cama eletrônica fosse seu leito de
morte. E, de repente, subia lá do fundo uma crise de pranto que precisei conter
rapidamente, pois não poderia prantear a morte de alguém que vivia. E me dominei
e me afastei em direção da janela mirando um pedaço de jardim lá fora.
Inspirei profundamente para despistar a choradeira que queria brotar e fazer de
conta que era apenas falsa impressão minha, pois ela, embora distante, ali continuava
viva. Recuperei a coragem e voltei ao seu lado e lhe perguntei se tinha algo a
dizer. Eu estava com meu gravador portátil digital e pretendia gravar. Para
minha decepção ela disse que não tinha nada para falar. Depois chegou a
refeição e já passava das onze horas. Ela quis comer batata frita e cebola que
faziam parte da bandeja da acompanhante. Eu percebi que o alimento lhe servia
de conforto quando minha irmã me disse que ela sempre gostou de cebola e batata
frita. Depois da refeição pediu fio dental, sorvete de chocolate e algo mais. E
então me despedi dela e fomos eu e minha irmã até o supermercado mais próximo
para comprar o que queria. Sem que pudesse atinar, foi a última vez que a vi
com vida, pois faleceu três dias depois. Desde então, secretamente, vou
refazendo minha visita; giro a maçaneta da porta e estou, mais uma vez, dentro do
quarto 108.
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